O CONFISCO DE BENS EM PROCESSO DE TRÁFICO DE DROGAS
Vamos analisar a possibilidade de restituição dos bens de valor econômico apreendidos em decorrência do tráfico de entorpecentes, considerando que a Constituição Federal, a Lei Antidrogas e o Código Penal determinam o perdimento desses bens.
A Constituição Federal é clara quanto ao confisco dos bens apreendidos no tráfico de drogas:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
O Supremo Tribunal Federal confirmou:
À luz dos precedentes da Corte, julgo ter razão a União, de modo que, com base no parágrafo único do art. 243 da Constituição Federal, deve-se proceder à expropriação-confisco do imóvel em questão, no qual havia laboratório artesanal utilizado para o refino e processamento de cocaína. Tal como sustentou a ora recorrente, a Fazenda Ponte Grande se insere como "bem de valor econômico" e o termo "apreensão" alcança todo e qualquer bem, não apenas os bens móveis. (Recurso Extraordinário 1.483.186 Minas Gerais - Min. Dias Toffoli, julg. 16/03/2024)
Ao julgar o Tema nº 647 o STF analisou a necessidade de se comprovar a habitualidade para justificar o confisco dos bens apreendidos em decorrência do tráfico de drogas:
"É possível o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico de drogas, sem a necessidade de se perquirir a habitualidade, reiteração do uso do bem para tal finalidade, a sua modificação para dificultar a descoberta do local do acondicionamento da droga ou qualquer outro requisito além daqueles previstos expressamente no art. 243, parágrafo único, da Constituição Federal"
A habitualidade é entendida como a traficância cometida (por pelo menos três meses anteriores ao fato - aproximadamente), normalmente é reconhecida no processo criminal com base em provas como interceptação telefônica ou quebra de sigilo telefônico e testemunhais.
O STF concluiu que não há necessidade de prova da habitualidade ou reiteração para decretação de perdimento do bem em favor da União.
PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE BENS
O pedido de restituição pode ser feito para que o proprietário recupere o bem.
Esse pedido precisa cumprir os requisitos apontados pelo Supremo, com base na legislação (Recurso Extraordinário com Agravo 1.482.492 Paraná):
1 - Demonstração cabal da propriedade do bem pelo requerente (artigo 120, caput, do CPP);
Art. 120. A restituição, quando cabível, poderá ser ordenada pela autoridade policial ou juiz, mediante termo nos autos, desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante.
2 - Ausência de interesse no curso do inquérito ou da instrução judicial na manutenção da apreensão (artigo 118 do CPP);
Art. 118. Antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo.
3 - E não estar o bem sujeito à pena de perdimento (artigo 91, inciso II, do CP).
Art. 91 - São efeitos da condenação: II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé.
Portanto, para o pedido de restituição deve ser comprovada a propriedade de bem.
Ainda, o bem em questão não pode ser de interesse processual, por exemplo, um veículo que está pendente de perícia não será restituído antes da realização porque interessa ao processo.
Por último, o bem não pode estar sujeito a pena de perdimento, como é o caso do bem apreendido no crime de tráfico.
O Superior Tribunal de Justiça acentua a mesma posição:
A expropriação de bens em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes tem previsão na própria Constituição da República (art. 243, parágrafo único) e decorre de sentença penal condenatória, conforme regulamentado, primeiramente e de forma geral, no art. 91, II, do CP e, posteriormente, de forma específica, no art. 63 da Lei n. 11.343/2006.
Além disso, firmou-se entendimento de que o perdimento pode ser determinado mesmo quando findar o processo criminal, quando não cabe mais recurso, e até em caso de absolvição:
"A restituição das coisas apreendidas, mesmo após o trânsito em julgado da ação penal, está condicionada tanto à ausência de dúvida de que o requerente é seu legítimo proprietário, quanto à licitude de sua origem, conforme as exigências postas nos arts. 120 e 121 do Código de Processo Penal, independentemente de ser a sentença extintiva da pretensão punitiva ou mesmo absolutória" (AgRg no AREsp n. 1.772.720/MT, relator Ministro RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 23/03/2021, DJe de 29/03/2021).
Voltando aos pressupostos exigidos: se a pessoa comprova que é proprietária do bem apreendido (1º requisito), em decorrência da apuração de tráfico de entorpecentes, chegamos à conclusão de que automaticamente o bem será confiscado como efeito da futura sentença condenatória.
"Automaticamente" quer dizer que não se exige pedido expresso da autoridade policial ou do órgão acusatório: Ministério Público.
Vê-se que aqueles requisitos são aplicados somente nos casos em que o proprietário não é o processado, o bem pertenceria, então, a um terceiro de boa-fé, aquele que sequer sabia que o comércio de drogas estava sendo realizado com o uso do bem, nesse caso a Lei possibilita a restituição, desde que cumpridos os três requisitos.
Recomendo a leitura do artigo anterior "É Possível Restituir Carro Apreendido no Processo de Tráfico de Drogas?".
Tem-se observado o perdimento de bens antes mesmo de prolatada sentença condenatória e decisões afirmando que a futura absolvição não afasta, automaticamente, o perdimento.
A prática demonstra que os juízos determinam a devolução dos bens apreendidos quando da absolvição diante da desvinculação do bem da origem criminosa:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. INCIDENTE DE RESTITUIÇÃO DE NUMERÁRIO APREENDIDO. INDEFERIMENTO. RECURSO DA DEFESA. ACOLHIMENTO. AGENTE ABSOLVIDO DAS IMPUTAÇÕES DOS CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. QUANTIA EM ESPÉCIE APREENDIDA NO INTERIOR DE SUA CASA. DESVINCULAÇÃO DO BEM DA CONDUTA CRIMINOSA DIANTE DO ÉDITO ABSOLUTÓRIO. DEFESA QUE LOGROU TRAZER ELEMENTOS BASTANTES DA PROCEDÊNCIA LÍCITA. RESTITUIÇÃO IMPERATIVA. (TJSC, Apelação Criminal n. 5003152-54.2023.8.24.0055, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Carlos Alberto Civinski, Primeira Câmara Criminal, j. 15-08-2024).
Se o bem é confiscado antes do final do processo o proprietário é intimado sobre o confisco, seja ele o próprio réu ou terceiro, lhe sendo oportunizado o direito ao contraditório e a ampla defesa.
Nesse momento o processado ou o proprietário do bem vai apresentar provas da licitude, de que não é decorrente de crime e, por isso, não pode ser confiscado.
Para esclarecer, quando cito bem de valor econômico, estou tratando de valores apreendidos em dinheiro, pedras preciosas, investimentos bancários, joias, imóveis, veículos...
De acordo com o STJ "Os arts. 125 e 126 do Código de Processo Penal autorizam o sequestro de bens imóveis adquiridos com o provento de crime, ainda que os bens tenham sido transferidos a terceiros, desde que haja indícios veementes da proveniência ilícita do bem" (RMS n. 49.904/RJ, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/9/2016, DJe de 5/10/2016.).
Consta nos dispositivos:
Art. 125. Caberá o seqüestro dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro.
Art. 126. Para a decretação do seqüestro, bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens.
Portanto, "Não há ilegalidade na extensão do sequestro a bens de terceiros não envolvidos diretamente no ilícito penal, desde que devidamente fundamentada a decisão em indícios veementes de que tais bens foram adquiridos ou construídos com finanças produto de crime".
Uma possibilidade seria o pedido de restituição do bem sendo o processado na qualidade de fiel depositário, com o fim de evitar a deterioração.
No entanto, a deterioração é justamente o motivo pelo qual os juízos estão concedendo o perdimento antecipado do bem.
PERDIMENTO DE VALORES EM DINHEIRO
É pacífico na legislação e jurisprudência que salários são impenhoráveis.
Mas não é um direito absoluto, ou seja, há casos em que o bloqueio dos valores em conta salário seguido do perdimento é determinado.
O STJ analisou uma situação em que eram feitos depósitos na conta salário, mas os valores exorbitantes permaneceram inertes na conta por meses, comprovando que aqueles valores não eram utilizados para o sustento do processado e de sua família, então, foi deferido o pedido do réu para levantamento (restituição) de valores correspondentes a 40 salários-mínimos e o restante permaneceu bloqueado.
Do mesmo modo se entende quanto a conta poupança.
ANULAÇÃO DO PROCESSO POR PROVAS ILÍCITAS
Nos casos em que há comprovada violação ilícita de domicílio ou alguma ilegalidade, seja na fase inquisitorial ou na fase processual, a devolução dos bens e valores é determinada:
RECUSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. ILICITUDE DAS PROVAS. INVASÃO DE DOMICÍLIO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. MANIFESTA ILEGALIDADE. [...] 3. Na hipótese, não foram realizadas investigações prévias nem indicados elementos concretos que confirmassem o crime de tráfico de drogas dentro da residência, não sendo suficiente, por si só, a verificação de atitude suspeita da ré ou mesmo a sua fuga no momento da abordagem, tampouco a apreensão da droga em sua posse. Relativamente à autorização para ingresso no domicílio, não há nenhum registro de consentimento do morador para a realização de busca domiciliar. 4. Recurso provido. Anulação das provas decorrentes do ingresso forçado no domicílio. Absolvição da recorrente (art. 386, II - CPP), determinando a expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver presa, e a restituição dos valores apreendidos em seu poder. (REsp n. 1.978.068/SP, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.)
Nesse caso, houve a declaração de nulidade das provas e a absolvição do acusado, com a consequente devolução do valor com ele apreendido na situação flagrancial.
PROVA DA AQUISIÇÃO LÍCITA
A prova da aquisição lícita do bem pode ser feita por documentos e extratos bancários, por isso é bastante dificultosa, mas possível.
Ocorre que, mesmo depois de, documentalmente, provar a propriedade e a aquisição lícita, o juízo utiliza o argumento de que o bem foi utilizado para o tráfico de entorpecentes e pode determinar o confisco.
A exemplo de drogas apreendidas no porta-malas do carro e no caso de imóveis que são locais utilizados para o tráfico de entorpecentes, como o laboratório dentro do imóvel mencionado anteriormente, que indica o uso indubitável do bem para o crime.
Por outro lado, nem todos os veículos e imóveis são perdidos em decorrência da prisão ou sentença condenatória pelo cometimento do tráfico de entorpecentes.
CONFISCO ALARGADO
A Lei 13964/2019, conhecida como pacote anticrime, possibilitou o confisco alargado como forma de "combate ao crime organizado", o resultado não tem sido alcançado, claro, mas esse é um assunto para a criminologia crítica.
O confisco alargado está previsto no artigo 91-A do Código Penal:
Art. 91-A. Na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito.
§ 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado todos os bens:
I - de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente; e
II - transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal.
§ 2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio.
§ 3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia, com indicação da diferença apurada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor da diferença apurada e especificar os bens cuja perda for decretada.
§ 5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes
Se trata do perdimento de todos os bens que excedem o patrimônio lícito do acusado/sentenciado, independentemente da origem ou da relação do bem com o crime.
Em todos os casos é direito do proprietário comprovar a licitude na aquisição do bem.
Conclui-se, então, que as alternativas para a restituição são a prova da licitude e a prova de desvinculação do bem com o crime.
Como sempre alerto: cada caso precisa de uma análise jurídica minuciosa.