Ideologia Punitiva e o Sistema Prisional
A afirmação "[...] pequenos avanços não compensam os defeitos" é do professor Dr. Juarez Cirino dos Santos se referindo a contribuição negativa dos meios de comunicação para opinião pública "[...] com a ideia falsa de que os problemas sociais podem ser resolvidos com penas criminais".
O pessimismo é justificado quando o advogado criminalista aponta a solução: políticas públicas.
A uma analogia, senão em igualdade, o sistema prisional do país se sustenta com o que sobra, quando ainda resta algum olhar para trás das grades porque o interesse da sociedade não tem dado voz ao encarceramento.
Shecaira pontua:
O encarceramento é o tipo de sanção com maior impacto e visibilidade na nossa sociedade. Em tempos distantes, as punições eram corporais e públicas. O suplício corporal era a prova visível e incontrastável da ação do Estado. A sociedade moderna, por seu turno, na sua riqueza e complexidade, reclama soluções coletivas e não individuais. Construindo prisões, construindo ainda mais prisões, aprovando leis que preveem penas detentivas ainda mais severas, os autores da política moderna encontram um modo de fazer ver a todos, e em especial àqueles que trabalham sobre o crime como categoria comportamental, que alguma coisa está se fazendo a esse propósito; qualquer coisa, especialmente para que se possam reafirmar a "lei e a ordem". Nenhuma outra sanção, senão a prisão, atinge tal objetivo.
Assim se explica por que se continua a manter a prisão enquanto pena principal, a despeito de seu fiasco.[1]
_ Então, abram as celas!
_ "Cantou, cantou, cantou"
Esse é o grito da liberdade. Consequência do alvará de soltura.
Poderia narrar os horrores que a advocacia criminal permite conhecer, mais lá dentro (Ergástulos) do que fora. Não sensibilizaria, salvo exceções.
Contando sobre os atos desumanos a resposta do senso comum é "ele(a) procurou esse caminho".
Não se trata de quem é o culpado, definitivamente, mas dos efeitos da punição pelo encarceramento na sociedade, na criminalidade, na ressocialização.
Da segregação desumana conhecemos, temos dados, e sequer um dia saberemos qual é o efeito de um sistema prisional que garante o básico para sobrevivência digna de um ser humano.
Em Porto Alegre/RS o pior cenário de prisão do país foi mostrado no documentário "CENTRAL: O PODER DAS FACÇÕES NO MAIOR PRESÍDIO DO BRASIL".
Não está tão longe do que presenciamos, por todo canto, como criminalistas.
Zaffaroni explica:
Na medida em que se trata um ser humano como algo meramente perigoso e, por conseguinte, necessitando de pura contenção, dele é retirado ou negado seu caráter de pessoa, ainda que certos direitos (por exemplo, fazer testamento, contrair matrimônio, reconhecer filhos etc.) lhe sejam reconhecidos. Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso.
Da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho - estabelecimento penal extremamente precário, é possível extrair um pouco da realidade prisional decorrente da superlotação:
A Corte verifica que essas pessoas sofrem as consequências de uma superpopulação com densidade próxima dos 200%, quando os critérios internacionais - como o do Conselho da Europa – salientam que ultrapassar 120% implica superpopulação crítica.
Conforme os conhecimentos elementares em matéria penitenciária e o verificado até o presente, reconhecido inclusive pelo Estado, essas consequências se traduzem principalmente em:
i. atenção médica ínfima, com uma médica a cargo de mais de três mil presos, quando a OMS/OPAS considera que, no mínimo, deve haver 2,5 médicos por 1.000 habitantes para prestar os mais elementares serviços em matéria de saúde à população livre;
ii. mortalidade superior à da população livre;
iii. carência de informação acerca das causas de morte;
iv. falta de espaços dignos para o descanso noturno, com superlotação em dormitórios, verificada in situ;
v. insegurança física por falta de previsão de incêndios, em particular com colchões não resistentes ao fogo, verificada in situ;
vi. insegurança pessoal e física decorrente da desproporção de pessoal em relação ao número de presos.
Em resposta à Corte Interamericana de Direitos Humanos o Estado indicou a construção de novos estabelecimentos.
É inacreditável que seja considerado que pessoas presas submetidas à situação de tortura possam aguardar o período necessário para uma construção civil.
A Corte Constitucional da Colômbia, a Suprema Corte dos Estados Unidos e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já vivenciaram o cenário.
A esse respeito – superlotação - o Supremo Tribunal Federal do Brasil emitiu a Súmula Vinculante nº 56, em 2016, considerando o déficit de vagas:
A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.
No entanto, o resultado não foi significativo.
Talvez o Dr. Juarez tenha razão: "[...] pequenos avanços não compensam os defeitos".
Uma das conclusões da Corte Interamericana extrai exatamente a pretensão desse escrito:
127. Não obstante o exposto, a Corte leva em conta que o dano emergente da eventual violação do artigo 5.6 da Convenção Americana teria ocorrido no plano da realidade, ou seja, a deterioração das pessoas privadas de liberdade as atinge de modo totalmente inverso ao mencionado na Convenção Americana, a saber, as condições do IPPSC, longe de promover a reinserção social dos presos, com vistas a uma convivência pacífica e respeitosa da lei e dos direitos dos demais habitantes, em muitos casos teria exercido efeito contrário, reforçando o desvio de conduta das pessoas submetidas às observadas condições degradantes. Por lamentável que seja a consequência, o mal está feito, e é indispensável tê-lo presente e levá-lo em conta ao decidir acerca da medida a adotar no presente caso.
Encarceramos para excluir e não para ressocializar.
O Poder dos Meios de Comunicação
De acordo com Rodrigues, no "Discurso midiático e violência", os meios de comunicação contribuem para o desvirtuamento do intuito ressocializador do sistema punitivo prisional:
Mais grave do que isso é a executivização, ou seja, passarem alguns veículos a operar como agências de criminalização secundária, fazendo do que foi o jornalismo investigativo um jornalismo policialesco, no qual a única informação obtida e divulgada, se jornalisticamente não significa coisa alguma. Uma manchete mobiliza muito mais o sistema penal – particularmente aqueles operadores que sucumbiram às tentações da boa imagem – do que uma portaria de instauração de inquérito policial, uma promoção ministerial ou uma sentença.
Em pesquisa sobre o poder da mídia, Guilherme Mota, citando Sodré, aponta:
Vários são os exemplos enunciativos dessa capacidade da mídia em formar opinião pública inclusive para derrubar políticos no país, entre os casos, está a expulsão de presidentes, revelando um grande poder à época, o de ferramenta geopolítica como se equipara o exemplo abaixo:
"Em 1954, jornais, rádios, habitualmente consorciados empresarialmente, montaram uma "operação" que levou o presidente Vargas ao suicídio(...) em 1964, 10 anos depois, jornais, rádio e televisão, trabalhando unidos para a tarefa, levaram o presidente Goulart ao exílio.."(...) A imprensa acolitando o rádio, no primeiro caso, e acolitando rádio e a televisão, no segundo, foi a alavanca que destruiu dois presidentes eleitos. Apelidar de democrático um regime em que isso se tornou possível é evidentemente, perigoso eufemismo".
Nilo Batista narra perfeitamente a tragédia:
Na televisão, os âncoras são narradores participantes dos assuntos criminais, verdadeiros atores – e atrizes – que se valem teatralmente da própria máscara para um jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação ou reproche aos fatos e personagens noticiados. Este primeiro momento no qual uma acusação a alguém se torna pública não é absolutamente neutro nem puramente descritivo. A acusação vem servida com seus ingredientes já demarcados por um olhar moralizante e maniqueísta; o campo do mal destacado do campo do bem, anjos e demônios em sua primeira aparição inconfundíveis.
O autor ainda aponta o programa Linha Direta como o nível máximo da executivização:
Linha Direta já retira conseqüências práticas do discurso criminológico único da mídia, da qual a publicidade não passa de um continuum retórico. Podemos estar nos aproximando do momento em que certas iniciativas processuais de alguns operadores do sistema penal que aceitaram este jogo só possam ser compreendidas através dos manuais de propaganda e marketing, sem que ao mesmo tempo o cidadão entrevistado por uma reportagem policialesca tenha assegurado seu direito ao silêncio.
Dr. Juarez aponta que "[...] a ideologia punitiva toma conta dos poderes Executivo e Legislativo, e encontra eco no Judiciário, cada vez mais aturdido por discursos repressivos de todos os lados".
É evidente a opinião da população em relação aos excluídos e ao que se deve fazer quando houver indício de cometimento de um delito: prendam-no(na)!
Os esforços são mínimos diante da situação, de se aplaudir, mas insuficientes.
A propósito, os trabalhadores internos não estão sujeitos à Consolidação das Leis do Trabalho, não tem vínculo empregatício e têm descontados até 25% do salário-mínimo para o Fundo Rotativo do Estado de Santa Catarina que retorna para o estabelecimento prisional como ressarcimento das despesas realizadas com a manutenção do preso.
Prender para Soltar
A Resolução nº 474/2022 alterou o art. 23 da Resolução 417/2021[2], do Conselho Nacional de Justiça, em decorrência do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional e do enunciado da Súmula Vinculante nº 56 do STF:
DO MANDADO DE INTIMAÇÃO PARA CUMPRIMENTO DE PENA EM AMBIENTE ABERTO
Art. 23. Transitada em julgado a condenação ao cumprimento de pena em regime aberto, previamente à expedição de mandado de prisão, a pessoa condenada será intimada para dar início ao cumprimento da pena, sem prejuízo da realização de audiência admonitória.
Desse modo, antes de decretar a prisão para cumprimento de pena em regime aberto é preciso intimar para audiência que dá início ao cumprimento.
É um início para o caminho que busca, e efetivamente encontra, soluções fora do sistema prisional.
Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Prisional
Foi reconhecida a situação degradante do sistema prisional brasileiro em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, proposta por partido político, narrando o quadro fático prisional, conforme o relatório:
[...] celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos, homicídios frequentes, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos, praticadas tanto por outros detentos quanto por agentes do Estado, ausência de assistência judiciária adequada, bem como de acesso à educação, à saúde e ao trabalho. Enfatiza estarem as instituições prisionais dominadas por facções criminosas. Salienta ser comum encontrar, em mutirões carcerários, presos que já cumpriram a pena e poderiam estar soltos há anos.
E ainda:
Conforme ressalta, as autoridades públicas e a sociedade têm conhecimento da situação. Assevera que a Câmara dos Deputados, mediante a "CPI do Sistema Carcerário", e o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, a partir de mutirões carcerários, já produziram relatórios a revelarem o quadro dramático e inconstitucional do sistema prisional brasileiro. Relembra a declaração do Ministro de Estado da Justiça, José Eduardo Cardozo, de que as prisões brasileiras são verdadeiras "masmorras medievais" e de que prefere morrer a ficar em uma delas.
Naquele ano, em decisão cautelar, o STF determinou a realização de audiências de custódia; liberação do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional e abstenção de novos contingenciamentos e o encaminhamento de informações, pela União e Estados, sobre a situação prisional.
Em medida cautelar!
Em 2022, o Supremo ressaltou a inclusão do § 6º no art. 3º da Lei Complementar nº 79/1994 reforçando a vedação ao contingenciamento de recursos do FUNPEN e constatou possível descumprimento da decisão cautelar nesse ponto, determinando a intimação do Ministério da Economia para esclarecimentos.
Enquanto isso, a sociedade é impactada pelas consequências com o aumento da criminalidade e da ideologia punitiva.
A Solução Imediata
Milton Santos aponta o "conformismo e inação que caracteriza nosso tempo, contaminando os jovens e, até mesmo uma densa camada de intelectuais", mas identifica a possibilidade de modificação do pensamento único para o pensamento universal:
De fato, se desejamos escapar à crença de que esse mundo assim apresentado é verdadeiro, e não queremos admitir a permanência de sua percepção enganosa, devemos considerar a existência de pelo menos três mundos num só. O primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro o mundo como ele pode ser: uma outra globalização.
De modo otimista, Santos relata:
O mundo definido pela literatura oficial do pensamento único é, somente, o conjunto de formas particulares de realização de apenas certo número dessas possibilidades. No entanto, um mundo verdadeiro se definirá a partir da lista completa de possibilidades presentes em certa data e que incluem não só o que já existe sobre a face da terra, como também o que ainda não existe, mas é empiricamente factível. Tais possibilidades, ainda não realizadas, já estão presentes como tendência ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas.
Ao adequar o otimismo ao tema é possível afirmar como solução primordial que a pessoa presa precisa ser ouvida, precisa ter voz.
Deem canetas e papel, deem oportunidade de mostrar que a segregação não torna a pessoa não-pessoa.
A declaração será tormentosa:
- "_precisei gritar diversas vezes pedindo ajuda, por dias, fui penalizado por isso, continuei gritando, até que consegui ajuda da OAB e fui solto".
- "_não tem água quente no chuveiro, me deixam sem comida, sem toalha de banho. Outros presos me obrigam a levar drogas para outras celas com ameaça, fui obrigado".
- "_Pedi caneta e papel muitas vezes, muitos lá precisam pedir, muitos não deveriam estar lá, muitos já cumpriram a pena".
- "_ Eles misturam todo mundo lá, eu estava com pessoas que matam sem pensar, eu cumpri 10 meses de prisão preventiva, mais tempo que a pena do crime, e não tinha como pedir ajuda".
- "_eu precisava registrar um Boletim de Ocorrência, não consegui, os terceirizados não deixam chegar na Polícia".
- "_eu estava cumprindo a pena certinho, não sei porque me prenderam".
Desse último, o mandado de prisão foi cancelado por determinação judicial, mas não no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões - BNMP, a pessoa foi presa, levada para outra cidade, sem recursos, a depender de quando a Defensoria Pública, abarrotada de processos, pudesse analisar e constatar o grave erro.
É um só caso?
Depois de dar voz aos segregados, deem condições básicas de subsistência, chuveiro quente, comida, médicos, toalhas, roupas, cobertores, tratamento digno, são seres humanos em sua máxima impotência.
Depois disso, e só o depois.